Contos: Os Olhos de Abgail




Lágrimas escorrem pelos olhos, se misturam ao que restava da maquiagem, borram a pintura, formam um desenho irregular. Era uma obra de arte de ruína e tristeza. Os passos acelerados puxam a saia curta e justa, o casaco caí pelo ombro, desajeitada ela tenta se manter de pé.


"Abgail, o que resta de você é tão pouco."



Ela apressa o passo. Corre pelo viaduto que cruza a larga avenida. Tudo é longe demais. É cansativo demais. As pernas amolecem,, os passos desaceleram, ela para, exausta. Segura o pouco de roupa que veste na tentativa de proteger o corpo do frio na madrugada paulista, inutilmente.



O centro de São Paulo parece uma imensidão vazia. É o silêncio inesperado mesmo em tempos de pandemia. Não ecoam os gritos de moradores de rua, de vendedores ambulantes, nem o latido de cachorros abandonados ou a buzina dos carros daqueles que se arriscam. Ela está completamente sozinha.


"Abgail, você é uma criatura solitária. Acostume-se de uma vez."


O silêncio ao seu redor revela dentro de si o desejo de gritar. A voz presa na garganta, a raiva presa no peito. A dor que afoga e afaga. A mesma velha conhecida que direciona o seu olhar para a imensidão da selva de pedra iluminada por postes de luz e por uma grande lua minguante.


Ela nota que andou o bastante para estar no centro do viaduto, próxima ao parapeito. Encara a queda, calcula a distância até o chão. Contudo, matemática não se enquadra em sua lista de talentos. Na verdade, seu único talento é se envolver nas mais diversas confusões, em relacionamentos tóxicos e em botecos mal frequentados. A vida era uma montanha russa e ela estava cansada de dar tantas voltas.


"Abgail, já pensou em desistir?"


"Sim." Ela sussurra em resposta a voz que a seguia desde a infância. Está tão acostumada a trocar confidências e ouvir conselhos da tal voz, decidindo assim que este seria o seu segredo. Ninguém a chamaria de louca por falar sozinha se ninguém descobrir que ela fala sozinha.



"O que você faria diante do abraço da morte?"



A garota passou as mãos pelos longos e desgrenhados cabelos crespos na intenção de arrumá-los, porém, nada naquele corpo poderia ser consertado. Ela estava estragada, destruída e reflexiva sobre os seus últimos minutos de vida. Apertou os olhos com força e deu passos à frente, debruçando-se sobre o parapeito.


Existe mesmo vida após a morte? Só se descobre tentando. Sendo assim, não foi difícil dobrar os joelhos e subir no concreto, o único objeto que lhe separava da tão esperada paz eterna.


Os olhos fechados, a mente vazia, o vento gelado da aurora batendo contra o seu corpo e finalmente, a queda livre. Ela sentiu o fim tomar conta de si, a plenitude. Um cenário branco e infinito, nenhum som ao seu redor.



"Abgail?"


E a voz a acompanhava em seus últimos minutos de vida?


O vermelho escarlate invadia lentamente o cenário branco que a cercava, manchando-o, mudando o ambiente, trazendo consigo a cacofonia, uma cascata de imagens imorais, confusas, enlouquecedoras e um coro desritmado a convocava.


"Abgail, não existe paz após a morte."



A dor retorna ao peito. A voz tem razão, não existe paz. Há dor, há desespero, há o grito preso na garganta que ela finalmente liberta para ecoar por todo o quarto, ainda que o ambiente preenchido de escuridão revele apenas a sombra de um homem recostado sobre o batente da porta. Ele sorri.



"Seja bem vinda, Abgail", diz a voz dentro da sua cabeça e também diz o homem.


Ele carrega consigo uma velha lanterna que não cumpre a sua função. O pouco que Abgail consegue enxergar do cômodo é um amontoado de revistas, de jornais, de colagens, de imagens, de mapas... muitas delas eróticas, muitas delas científicas.


Ameaçou questionar quando os lábios se moveram, suas dúvidas estavam descritas na sua expressão. E antes que pudesse declarar, o homem se aproximou sem pressa e proferiu com toda a calma que se esforçava para manter, "Abgail, meu nome não é importante. Há tanto com o que você precisa se preocupar. E por tanto tempo eu aguardei pelo dia em que você iria finalmente estar pronta para o abraço. Há tanto a ser feito, Abgail, tanto." Ele suspirou, ajeitou a postura, evitando a ansiedade que embargava a voz. "Mas haverá tempo para tudo. Sim, haverá. Inclusive para as suas perguntas. E são tantas respostas."





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